Brasil produziu comida para 1,6 bilhão, mas 33 milhões passam fome. Como?

A desigualdade entre alta produção e insegurança alimentar no país.
Letícia Piccolotto Em 08 de August de 2022

Cerca de 828 milhões de pessoas vão para a cama com fome todas as noites. É o que mostra o relatório "Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2022" publicado em junho pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura). Depois de permanecer quase inalterado desde 2015, o número de pessoas afetadas pela fome cresceu em quase 150 milhões desde o início da pandemia —mais 103 milhões entre 2019 e 2020 e outros 46 milhões em 2021. A fome mundial aumentou ainda mais em 2021, como reflexo das profundas desigualdades dentro e entre os países durante a recuperação econômica no período pós-crise sanitária, conforme aponta o relatório. E as projeções não são nada otimistas: aproximadamente 670 milhões de pessoas ainda deverão passar fome até 2030 —cerca de 8% da população mundial. O número é o mesmo daquele observado em 2015, ano em que foi lançada a Agenda para o Desenvolvimento Sustentável, também conhecida como Agenda 2030. Esse esforço liderado pela Organização das Nações Unidas (ONU) elegeu como uma de suas prioridades o combate à pobreza e à fome. Será absolutamente triste reconhecer que, passados 15 anos, corremos o risco de não alcançar qualquer avanço em temas tão fundamentais para a dignidade humana.

 

No Brasil, a situação também é grave. De acordo com o relatório da FAO, mais de 60 milhões de brasileiros enfrentaram algum tipo de insegurança alimentar —ou seja, 3 em cada 10 habitantes do país. Os últimos números da pesquisa revelam uma piora preocupante da fome no nosso país, uma vez que entre 2014 e 2016, a insegurança alimentar atingia 37,5 milhões de pessoas e 3,9 milhões estavam em condição grave. O Brasil também voltou ao Mapa da Fome da ONU. Segundo dados da SOFI 2022, a Prevalência de Subalimentação (PoU) entre os anos de 2019 e 2021 foi de 4,1%, representando cerca de 8,6 milhões de pessoas. Segundo a FAO, um país passa a integrar o Mapa da Fome quando apresenta uma PoU maior que 2,5%.

 

Abundância e escassez

O paradoxo da insegurança alimentar é revoltante. Nele, a produção de alimentos, os desperdícios e uma população com fome extrema coexistem simultaneamente. Em 2021, o Brasil alcançou uma produção suficiente para alimentar 1,6 bilhão de pessoas. No mesmo ano, a indústria de alimentos alcançou um faturamento de R$ 922,6 bilhões, representando um aumento de 16,9% em relação ao ano anterior. Em meio a tanta abundância, um número choca: 33,1 milhões. É o total de pessoas que, hoje, estão em situação de insegurança alimentar grave. Em outras palavras, 15,5% de toda a nossa população passa fome todos os dias. Diante desse cenário, a primeira pergunta que nos vem à mente é: por que produzimos tanto e, ainda assim, estamos tão famintos?

 

Um problema tão complexo não tem uma resposta tão simples. Segundo especialistas, há fatores mais conjunturais, como a pandemia de covid-19, os conflitos geopolíticos, como a guerra na Ucrânia, e a inflação que atinge todos os países de uma economia globalizada. Mas há também questões estruturais, como as desigualdades sociais, os efeitos da mudança climática, além de perdas e desperdícios na produção e no consumo de alimentos. Segundo dados apresentados pelo Programa de Meio Ambiente da ONU, 17% dos alimentos produzidos em 2021 foram perdidos ou desperdiçados. Recursos valiosos da natureza são utilizados para, literalmente, nada; e as perdas e desperdícios são responsáveis por assustadores 10% das emissões de gases do efeito estufa, responsáveis pelo processo de mudança climática que temos vivenciado. O combate à fome deve ser encarado como um desafio urgente e coletivo. Como sociedade, é inadmissível seguir aceitando a coexistência de abundância e escassez.

 

Não será fácil, é verdade, mas podemos contar com as centenas de tecnologias que surgem a todo o momento e que nascem com o objetivo de construir um ciclo de produção mais eficiente, sustentável e acessível. O mercado de foodtechs e agritechs recebeu um investimento de US$ 10,7 bilhões entre 2020 e 2021, um aumento de 132% em relação ao período anterior, segundo dados da PwC. Em 2019, já discuti sobre o potencial das foodtechs e destacava como essa seria uma agenda fundamental para o nosso futuro. A insegurança alimentar tem sido um tema central para o BrazilLAB, que já acelerou muitas govtechs e suas soluções para o combate à fome, por exemplo, a BeGreen, a maior rede de fazendas urbanas da América Latina, um modelo inovador e que traz mais eficiência à produção e ao transporte de alimentos.

 

Não tenho dúvidas de que o Brasil pode ser um protagonista nas discussões globais sobre a segurança alimentar mas, para isso, será preciso olhar com atenção para as nossas políticas internas, trabalhar na recuperação da nossa reputação internacional, investir no desenvolvimento científico e, acima de tudo, trabalhar pela proteção dos nossos recursos naturais e pelo direito das pessoas.

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