BrazilLAB na PEGN: Govtech - o 'patinho feio' da inovação começa a se transformar em cisne

No mundo pós-pandêmico, as startups dedicadas à transformação digital do setor público têm papel fundamental na construção de Estados mais sustentáveis, transparentes e democráticos
Em 15 de February de 2022

Neste último dia 24 de janeiro, foi publicada a entrevista que o CEO do BrazilLAB, Guilherme Dominguez, concedeu para a repórter Karina Pastore, do portal Pequenas Empresas & Grandes Negócios - PEGN. A matéria aborda os avanços do mercado GovTech no Brasil e como esse ecossistema vem ganhando cada vez mais maturidade e chamando a atenção de investidores.

O destaque é para o case da Gove, startup que recebeu um aporte de R$ 8 milhões, o maior valor já destinado a uma GovTech brasileira, o que só reforça que estamos no caminho certo. Na matéria, nosso CEO ressaltou também a importância de ferramentas inovadoras para o enfrentamento dos efeitos da COVID-19, como na recuperação pós-pandemia. Confira abaixo a matéria na íntegra:

 

Govtech: o 'patinho feio' da inovação começa a se transformar em cisne

Publicado por Karine Pastore no Portal PEGN.

"Você enlouqueceu?!"

A surpresa, até bem pouco tempo atrás, era quase inevitável quando alguém anunciava a intenção de entrar no ecossistema govtech. Aos olhos inquietos de muitos empreendedores, fazer negócio com o governo (de qualquer esfera, na maioria dos países) nunca teve o apelo (e o charme) da inovação 4.0. O setor público é gigantesco, complexo e fragmentado. Complicado de navegar. Burocrático e moroso, pouco atraente aos investimentos de impacto. Avesso ao risco, sem a efervescência da cultura da experimentação.

E é tudo verdade. Nunca foi fácil mesmo circular pelos meandros da máquina pública.

O cenário, porém, começou a dar sinais de mudança há uns cinco anos. “Foi impulsionado por uma tempestade perfeita que combinou o amadurecimento da nova infraestrutura digital, como computação em nuvem e aplicativos no modelo SaaS, com a flexibilização das leis de compras públicas, a disponibilidade de capital de investimento, novos executivos C-level, com experiência em tecnologia para governo e um ecossistema de apoio”, explica Dustin Haisler, diretor de inovação da americana e.Republic, empresa de pesquisa e mídia especializada no setor govtech.

Nada, no entanto, se compararia ao impacto provocado pela pandemia do novo coronavírus. Depois de o SARS-CoV-2 fazer suas primeiras vítimas em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, o ritmo da renovação explodiu. A humanidade trancada em casa, a vida confinada na rede. A transformação digital se impôs ao setor público. Era inevitável. “Houve uma mudança radical”, define a PEGN Tanya Tiler, pesquisadora da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, fundadora da consultoria StateUp e uma das principais figuras nos estudos do ecossistema govtech global. No Brasil, em 2020, o número de serviços públicos digitalizados chegou a cerca de 3 mil contra os 1,7 mil do ano anterior. A título de comparação, em 2017, esse número não passava de 500.

A agilidade proporcionada por estratégias e ferramentas inovadoras se revelou imprescindível não só no enfrentamento da crise sanitária como nos trabalhos de recuperação pós-pandemia. “Govtech deixou de ser assunto de nicho e virou mainstream”, diz o advogado Guilherme Dominguez, cofundador e CEO do BrazilLab, o primeiro (e único) hub de inovação no Brasil dedicado a fazer a conexão entre startups e poder público. “A aspiração virou realidade.”

Está em curso uma revolução no universo govtech.

Um indício da aceleração é dado pela análise comparativa de dois importantes levantamentos sobre o setor. O primeiro é do Crunchbase. Entre 2003 e 2019, as govtechs listadas na plataforma americana obtiveram US$ 2,8 bilhões em investimentos. Dois terços dos quais, no entanto, apenas de 2014 em diante. A segunda pesquisa é da Nebula, base de dados global administrada pela StateUp. As 21 maiores startups, entre as 450 catalogadas, receberam cerca de US$ 680 milhões em aportes somente em 2020. Avaliado em US$ 400 bilhões, o setor deve chegar a 2025 com US$ 1 trilhão. Festejadíssimas entre os inovadores, as fintechs e as cybertechs, juntas, não chegam nem perto disso.

Outro exemplo? Em 2020, segundo o relatório Govtech Market Overview | Q2 2021, elaborado pela consultoria americana MergerTech, a Tyler Technologies entrou para o S&P 500, firmando-se como a primeira empresa inteiramente dedicada ao setor público a figurar entre as 500 maiores companhias listadas na Bolsa de Valores de Nova York e na Nasdaq. Desde então, ultrapassou três vezes as estimativas de EPS (Earnings Per Share). No trimestre encerrado em setembro de 2021, a receita foi 40% maior do que no mesmo período de 2020. Sediada no Texas, a Tyler é o maior fornecedor de software para o setor público nos Estados Unidos. Nos mercados govtech mais consolidados, como o americano e o europeu, fusões e aquisições começam a ser vistas com mais frequência. 

Em alguns países com mais intensidade do que em outros, o amadurecimento do setor govtech é um fenômeno mundial. O documento Digital Government in the Decade of Action for Sustainable Development, produzido pela Organização das Nações Unidas (ONU), é um forte indicador desse movimento. A digitalização do setor público se consolida em todos os 193 Estados-membros – inclusive nos mais pobres. Atualmente, 65% das nações estão nas categorias alta e muito alta do EGDI (E-Government Development Index, na sigla em inglês). “O ano de 2020 foi bastante significativo no benchmarking global”, escreve Liu Zhenmin, subsecretário para Assuntos Econômicos e Sociais, da ONU, na apresentação do trabalho. “Mais do que nunca, os governos foram lembrados de que a transformação digital é imprescindível para o desenvolvimento sustentável dos países e que é preciso inovar constantemente, mesmo em tempos difíceis.” 

Não é uma questão de escolha, mas de obrigação, defende a economista espanhola Sandra Sinde, diretora de compras públicas e inovação aberta da consultoria Idom: “A única forma de enfrentar as complexidades de nossos dias”, pontua, em seminário realizado recentemente sobre o tema pelo BrazilLab, Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e Amazon Web Services (AWS). Uma ferramenta essencial na construção de Estados transparentes, justos e democráticos.

O Brasil tem a oportunidade de se firmar como um dos mais importantes players do ecossistema govtech global. “Essa pauta sempre avançou no país, a despeito dos presidentes da República”, lembra Guilherme Dominguez, do BrazilLab. Nosso modelo de votação eletrônica, por exemplo, é referência mundial. Somos pioneiros na declaração digital do imposto de renda. A plataforma gov.br soma 115 milhões de usuários (em 2019, eram 1,8 milhão) e aparecemos na sétima colocação no ranking do Banco Mundial entre os dez países com o maior número de serviços públicos digitalizados – o GovTech Maturity Index 2020 avaliou 198 nações. Sem esquecer, claro, do entusiasmo dos brasileiros com tecnologia – estamos entre os maiores early adopters.

Avançamos também no campo da legislação. Recentemente foram aprovados três instrumentos jurídicos que facilitam os negócios entre startups e setor público. A Lei de Governo Eletrônico prevê a aceleração da migração dos serviços públicos para plataformas digitais. A Nova Lei de Licitações unifica o regime jurídico sobre contratos administrativos. E, por fim, o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador moderniza o ambiente de negócios, firmando os meios de contratação de inovações tecnológicas pelo Estado.

Aos poucos, ganhamos relevância no ecossistema govtech global. “O Brasil é um mercado de sonho”, define Tanya Tiler. Não é para menos. Somos um país enorme, de dimensões continentais, populoso. “Milhares de governos – de megacidades a pequenos municípios, todos com a necessidade crescente de adotar a digitalização. Para qualquer empresário disposto a atender às demandas do grande público e experimentar negócios em diferentes escalas e em diversos tipos de contextos, o Brasil é, em muitos aspectos, uma grande oportunidade”, avalia a pesquisadora inglesa.

Um terço do PIB brasileiro está na mão do Estado. Cerca de 72% da população só tem acesso à saúde via Sistema Único de Saúde. São cerca de 80 milhões de pessoas na assistência social. Oito de cada dez alunos do ensino médio estão na educação pública. E 42% da população usa diariamente o transporte público. “Sem contar a larga oportunidade em serviços financeiros, pelos quais pagamos trilhões em impostos”, diz Gustavo Maia, fundador e CEO da Colab, plataforma de cidadania para uma gestão pública mais colaborativa e eficiente – uma das primeiras govtechs brasileiras e uma das mais conceituadas no mercado internacional. “Será que temos um bom mercado aí para explorar?”, provoca ele.

O investidor de risco Guilherme Lima, da gestora Astella, lista outros fatores que devem impulsionar o avanço do setor no Brasil:

  • Com a aceleração de diversas iniciativas durante a crise sanitária, os governos já perceberam a necessidade e a efetividade da transformação digital do setor público.
  • Apesar do sentimento comum levar ao sentido oposto, o ciclo de vendas para o setor público está cada vez mais parecido com o das grandes empresas privadas.
  • Ultraconectada e mais bem informada, a população está mais exigente em relação à eficiência e transparência da administração pública.

Tem mais. O lema dos inovadores não é “apaixone-se pelo problema e não pela solução”? Pois, então... Carências e ineficiências não nos faltam.

Estamos entre os países mais desiguais e corruptos do mundo. A pesquisa mais recente do World Inequality Lab, da Escola de Economia de Paris, traz dados contundentes (e aterradores) sobre a discrepância social e de renda no Brasil. Os 10% mais ricos ganham quase 60% da renda nacional total. Esse grupo tem rendimentos 29 vezes maior do que a metade mais pobre –dona de apenas 1% da riqueza da nação.

Como acontece em diversos países, alguns setores do poder público brasileiro ainda têm de enfrentar a obsolescência dos sistemas legados – “a arqueologia do software”, como define, em artigo no MIT Technology Review, o arquiteto e designer Sha Hwang, confundador da Nava Public Benefit Corporation, govtech americana, com sede em Washington. Imagine uma cidade cujas casas foram construídas antes da implementação da infraestrutura municipal e não foram pensadas para se conectar à rede elétrica ou de esgoto. Segundo Sha, é o que acontece, frequentemente, na transformação digital do setor público – funcionários seguindo o mesmo sistema há trinta anos, com uma planilha de milhões de linhas de atualizações. Uma amarra e tanto.

A digitalização do governo pode ainda ajudar a recuperar os cofres públicos. Oito em cada dez prefeituras brasileiras estão com as contas em situação crítica ou muito crítica. “O aperto leva à procura por soluções de eficiência, agilidade e escalabilidade das operações governamentais”, completa o investidor da Astella. Outra vantagem da digitalização – ajudar na recuperação financeira das contas governamentais. Cada R$ 1 investido em programas de transformação digital proporciona uma poupança de R$ 5, no mínimo, segundo a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, do Ministério da Economia.

Um atendimento presencial tem um custo médio de cerca de R$ 44. O atendimento online, R$ 1,20. Uma redução de 97% em recursos públicos, por transação. Entre janeiro de 2020 e janeiro de 2021, graças aos serviços digitalizados, foram poupados R$ 2 bilhões. E não é apenas o poder público que ganha, não. Segundo dados da Secretaria de Governo Digital, daquele total, R$ 1,5 bilhão é economizado pelos cidadãos. Eles não perdem tempo e dinheiro, por exemplo, com o deslocamento até a repartição ou com despachantes.

Para se ter ideia do potencial de crescimento do setor no Brasil, basta dar uma olhada nos gastos anuais de todas as esferas do governo brasileiro com compra de tecnologia. RS 25 bilhões – dos quais R$ 5 bilhões saíram somente dos cofres federais. Aos poucos, dinheiro novo começa a chegar. Os olhos dos investidores de risco se voltam com interesse para as govtechs.

Recentemente, a gestora KPTL, em parceria com a Cedro Capital, criou um fundo dedicado exclusivamente às startups focadas no setor público – o único da América Latina e o segundo no mundo, depois do americano Govtech Fund, lançado em 2014. A meta é captar R$ 200 milhões, para investir entre 20 e 25 startups. “O retorno de capital das govtechs da carteira é de 9,2 vezes, enquanto a média do mercado de venture capital, em período equivalente, é 1,6 vez”, comemora o economista Adriano Pitoli, head do GovTech Brasil Fund, pela KPTL. As duas gestoras contam, juntas, com o maior portfólio de govtechs do país – oito startups.

No final de 2020, a Astella fez um aporte de R$ 8 milhões na Gove – o maior valor já destinado a uma govtech brasileira. Até então, em seus cinco anos de história, a empresa paulista operava com recursos próprios. Fundada pelos amigos de faculdade Rodolfo Fiori e Ricardo Ramos, a Gove é especializada na automatização da análise de dados financeiros de pequenas e médias cidades e na identificação de ineficiência na gestão pública. Do portifólio da startup, constam clientes em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Pará. Se você estava esperando receber a notícia de aportes espetaculares, daqueles que dão origem a unicórnios, o setor ainda não faz o tipo. E tende a ser assim no mundo todo.

Um outro sinal inequívoco da expansão e do amadurecimento do setor no Brasil é a aquisição, no final de novembro, da healthtech Epitrack pela Colab. Uma pesquisa realizada pela govtech com pouco de mais quatro mil usuários revelou que os serviços que eles mais gostariam de acessar na plataforma eram os de saúde. Cerca de metade deles (exatos 48,7% dos participantes) têm o tema como prioridade – em segundo lugar, lá atrás, com 12,7% dos votos, vem “impostos e taxas”. Fundada em 2013, por Onício Leal Neto e Jones Albuquerque, a Epitrack usa a vigilância participativa no monitoramento e controle de doenças. No início da pandemia de covid-19 no Brasil, em março de 2020, a healthtech e a govtech já haviam unido esforços na criação do aplicativo Brasil sem Corona, que, por meio da inteligência de dados, fazia a previsão, com até sete dias de antecedência, do ritmo e evolução do SARS-CoV-2 em várias cidades brasileiras. 

Apesar dos avanços, o ecossistema govtech ainda tem de lidar com entraves históricos. No estudo Thinking about Govtech – A Brief Guide for Policymakers, da consultoria StateUp, e no painel Why is it to Hard to Build Government Technology, promovido pelo MIT Technology Review, especialistas elencam as principais amarras à entrada massiva das empresas de inovação no setor. Entre as quais, estão:

  • Falta de compreensão tecnológica por parte dos gestores públicos,
  • Pouco conhecimento sobre o trabalho das empresas em fase de arranque,
  • A percepção da inovação como um “extra” – e não como um trabalho essencial,
  • Processos complexos de compra,
  • Demora na tomada de decisão,
  • Confiança excessiva na digitalização individual,
  • Estruturas antiquadas
  • Culturas organizacionais avessas à experimentação,
  • Falta de conexão entre o poder público e o ecossistema de inovação,
  • Falta de vontade política,
  • Medo da percepção pública do fracasso,
  • Obrigatoriedade em equilibrar a experimentação com a estabilidade,
  • Base de dados fragmentada.

Pode ser difícil entendê-los e complicado conquistá-los, mas os governos são um cliente e tanto. Empregadores gigantescos, proveem serviços para literamente todo mundo e estão entre os maiores proprietários de dados do planeta. Como costuma dizer a economista Sanda Sinde, a transformação digital do setor público teria de seguir o princípio dos quatro Ds – Decisão tanto estratégica como política, Definição clara dos processos de renovação, Dinheiro e Disposição da equipe para a mudança, um time com a consciência de que os risccos são inerentes aos processos de inovação.

Para ser efetiva, a renovação também pressupõe uma mudança de mentalidade de todos os envolvidos. Nesse ponto, Sandra gosta de citar o filósofo austríaco Ludwig Wittgestein (1889-1951): “Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”. O ecossistema govtech não exige apenas um novo modelo de pensamento do governo, mas também dos inovadores. “Os empreendedores de setores regulados, como o do governo, precisam ter um nível maior de sofisticação para construir modelos de negócios e processos, de forma criativa e estratégica para navegar em mercados complexos”, defende o investidor de risco Guilherme Lima, da Astella Investimentos. Como bem lembra Gustavo Maia, CEO da govtech Colab, os serviços digitais têm de ser pensados para o digital. “Se é bom no analógico não significa que será bom no digital”, diz ele.

Já está comprovado que a digitalização ajuda a enxugar a máquina pública, simplificando processos. Aconteceu na Dinamarca, país com o mais alto grau de amadurecimento govtech do mundo, segundo a ONU. “Temos de evitar a e-burocracia”, diz Letícia Piccolotto, cofundadora e presidente do conselho do BrazilLab. “Vi acontecer na pandemia. Muitos governos começaram a digitalizar seus processos, mas fizeram isso sem muito cuidado, na pressa. Muito trabalho vai ter de ser revisitado.”

No processo de renovação do setor público, a digitalização não pode ser o fim em si mesma. “Não se trata apenas de vender tecnologia para o governo”, defende Guilherme Dominguez. É muito mais do que simplesmente levar uma batelada de documentos do mundo físico para o virtual. “Hoje, no Brasil, temos cerca de 3 mil serviços públicos digitalizados. Mas não seria possível simplificar processos e reduzir esse número para 1,5 mil?”, provoca o CEO do BrazilLab. O ponto de partida, completa a pesquisadora Tanya Tiler, é sempre o interesse por melhorar a vida dos cidadãos. Para Liana Dragoman, diretora de design de serviços da cidade americana de Philadelphia, em artigo da revista MIT Technology Review, muitos serviços são ainda projetados em torno do funcionamento do governo. “Se você está tentando obter uma licença para usar um campo de futebol, precisa saber qual é o departamento que pode lhe conceder essa autorização, mas os moradores só querem acessar o site da prefeitura e reservar o campo”, exemplifica ela.

Ao fim e ao cabo, a revolução govtech é sobre pessoas. Sobre restaurar e garantir a confiança dos cidadãos no Estado. Sobre transparência, sustentabilidade e democracia.

Confira a matéria na íntegra no site da PEGN.

 

 

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