Cenário desesperador: quem menos contribui à mudança climática sofre mais

Chuvas torrenciais, deslizamentos de terra e tragédias humanas: a crise climática tem seus efeitos mais drásticos nas populações mais vulneráveis e seu enfrentamento depende da justiça climática.
Letícia Piccolotto Em 27 de March de 2023

*Texto publicado originalmente na coluna semanal de Letícia Piccolotto no UOL/Tilt. 

As últimas semanas foram marcadas por chuvas torrenciais em diversas cidades do Brasil. Após a tragédia do litoral norte de São Paulo, chuvas fortes provocaram deslizamento de terra que atingiu 11 casas em Manaus. A cidade de São Paulo também tem vivido dias caóticos com temporais que causam alagamentos e transtornos aos moradores. Como já discuti aqui, eventos climáticos extremos —causados pelo processo de mudança climática— têm sido cada vez mais fortes e recorrentes. Diversos países e populações têm sofrido cotidianamente as consequências do aumento da temperatura terrestre. Embora a crise climática tenha escala global, seus impactos são sentidos de forma diferente pelas nações. É o que afirma o mais novo relatório lançado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) das Nações Unidas.

Lançado em 20 de março, o documento retoma a discussão sobre justiça climática, ao afirmar que as populações que menos contribuíram para a mudança climática são as que estão sofrendo de forma desproporcional o seu impacto negativo. justiça climática é um braço da justiça ambiental, que aborda especificamente os impactos desproporcionais das mudanças climáticas sobre determinados grupos sociais. Foi apenas em 2015 que o termo foi oficialmente reconhecido no preâmbulo do Acordo de Paris, um verdadeiro marco histórico em múltiplos sentidos para a comunidade climática.

O tema da justiça climática é de extrema urgência. Segundo o relatório do IPCC:

  • Quase metade da população vive em regiões altamente vulneráveis às mudanças climáticas;
  • Na última década, as mortes por enchentes, secas e tempestades aumentaram 15 vezes nessas localidades.

Essa realidade é bastante conhecida no Brasil, especialmente nas periferias e grandes centros urbanos. De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) há 40 mil áreas de risco de inundação e deslizamentos no Brasil já mapeadas, em 825 municípios, o que corresponde a 8,2 milhões de brasileiros vivendo em áreas de risco de deslizamento de terra e enxurradas. São também nessas áreas que, por exemplo, se concentram os piores índices de poluição do ar e das águas, assim como maior incidência de riscos de inundações e deslizamentos, expondo essa população vulnerabilizada aos perigos de desastres naturais e a piores condições de saúde. Os dados apontam que a crise climática não só reflete, como também aumenta as desigualdades e injustiças sociais existentes.

De acordo com o relatório "Extreme Carbon Inequality", da Oxfam, a metade mais pobre da população global —cerca de 3,5 bilhões de pessoas— é responsável por cerca de apenas 10% do total das emissões globais atribuídas ao consumo individual, mas vive predominantemente nos países mais vulneráveis às mudanças climáticas. Ou seja, os países mais vulneráveis aos riscos climáticos são também os que menos poluem, como aponta o índice ND-Gain, que analisa a exposição e o potencial de impacto climático sobre os ecossistemas.

Há também o agravamento de desafios sociais, como os dos refugiados climáticos, que já são uma realidade. Para se ter uma ideia da extensão do problema, apenas em 2021, ocorreram mais de 23,7 milhões de migrações intranacionais, ou seja, dentro de um mesmo país, resultantes de eventos relacionados ao clima, incluindo inundações, tempestades e ciclones, conforme o Centro de Monitoramento de Deslocamento Internacional (IDMC, em inglês). O cenário é desesperador, é verdade, mas ainda há tempo para reverter o acelerado processo de mudança climática, aponta o IPCC.

Se agirmos rápido e de forma intensa e mobilizarmos as tecnologias existentes, podemos frear o aquecimento global e, com isso, evitarmos as inestimáveis e incontáveis perdas de vidas humanas, animais e da biodiversidade do planeta. Há recursos suficientes para implementar essas transformações tão necessárias, mas é imprescindível que tais mudanças possam beneficiar a todos, com prioridade para as populações mais marginalizadas e impactadas negativamente pela mudança do clima. Um novo modelo de desenvolvimento socioeconômico só poderá ser construído com sucesso caso as nações se comprometam a combater desafios históricos que mantém em situações de desigualdade, injustiça e marginalização grupos cada vez maiores de pessoas ao redor do mundo.

 

Confira o texto na íntegra no UOL/Tilt.

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