Fraude da Farmácia Popular: Brasil digitaliza pouco e perde muito

É preciso priorizar a agenda de transformação digital dos serviços públicos em nosso país para superar fraudes como essa.
Em 30 de May de 2022

*Texto publicado originalmente na coluna semanal de Letícia Piccolotto no UOL/Tilt.

 

Com a pandemia de covid-19, o aplicativo ConecteSUS, que registra as doses de vacinação, se popularizou. Mas, além de reunir esses comprovantes digitais, a plataforma também guarda o histórico de atendimento de um indivíduo em todo o sistema público de saúde. E foi graças a essa digitalização e integração de serviços que um enorme esquema fraudulento veio à tona. Ao explorar o ConecteSUS, diversos usuários entraram na funcionalidade "medicamentos" e se surpreenderam com o registro de remédios retirados em farmácias que eles jamais haviam visitado ou sequer conheciam. O esquema tem como alvo o Programa Farmácia Popular, do governo federal. A iniciativa, criada em 2004, é uma ação fundamental para garantir o acesso da população a medicamentos controlados, que são distribuídos de forma gratuita ou com subsídios públicos. Somente em 2021, o custo do programa foi de R$ 2,5 bilhões, direcionados para as mais de 30 mil farmácias credenciadas.

 

Os criminosos criaram "farmácias fantasmas" e, utilizando-se de receitas falsas e até documentos de pessoas já falecidas, conseguiram acesso à transferência de recursos do Ministério da Saúde, responsável pela gestão da Farmácia Popular. Contribui para esse cenário o fato de que a capacidade de fiscalização, investigação e punição desses crimes tem se reduzido progressivamente. Segundo o DENASUS (Departamento Nacional de Auditoria do SUS), um dos desafios para a atividade de controle é o baixo contingente de pessoal, que, de 2016 para 2022, sofreu uma redução de aproximadamente 40%. O segundo fator é a baixa maturidade tecnológica na gestão do programa.

 

É uma combinação de menos servidores, sistemas ineficazes e uma demanda nacional. O tempo de espera para agendar uma auditoria em cada farmácia, por exemplo, pode levar em torno de 2 anos, e para finalizá-la entre 4 e 7 meses. A baixa capacidade de combate às fraudes na Farmácia Popular gerou resultados concretos: um prejuízo de R$ 2,6 bilhões em desvios em todo Brasil, nos anos de 2015 a 2020, conforme estimativas da Controladoria-Geral da União (CGU).

 

A cifra é assustadora. Não só por representar uma evidente prova sobre a ineficiência na gestão de um serviço público essencial. Mas, principalmente, por nos relembrar que toda a perda de recursos orçamentários é um prejuízo coletivo. Nesse caso concreto, equivale aos custos de um ano do Farmácia Popular ou tantas outras políticas públicas que poderiam ser implementadas para atender o interesse da população.

 

Transformação digital no setor público

 

As fraudes no Programa Farmácia Popular revelam a importância de priorizar a agenda da transformação digital dos serviços públicos em nosso país. Com a utilização de tecnologias e processos já existentes —como inteligência artificial e a integração de bases de dados— a atividade de controle seria ampliada e otimizada.

 

Já discuti aqui os avanços que a agenda de digitalização alcançou nos últimos anos. Em 2018, por exemplo, foi criado o Sistema Nacional para a Transformação Digital (SinDigital), e com ele, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital). Trata-se de um plano para a digitalização dos serviços públicos com o objetivo de aumentar o nível de eficiência da atividade governamental, reduzindo custos e racionalizando processos, além de aumentar a transparência e controle das atividades estatais, ampliando também a participação social na formulação das políticas públicas.

 

Outras iniciativas também estão sendo construídas, como a Plataforma de Análise de Dados do Governo Federal (GovData), a Plataforma de Interoperabilidade ConectaGov e a Plataforma de Reconhecimento Digital do Cidadão (Predic). Todas elas são fundamentais para a construção de um governo mais eficiente, transparente e atento às demandas dos cidadãos. Mas estamos longe do cenário desejado.

 

É preciso investir na criação de uma identidade única digital para todo e qualquer cidadão brasileiro; rever e implementar novos procedimentos de segurança digital e certificação dos indivíduos; além de contar com a contribuição das govtechs e suas soluções voltadas à digitalização de serviços públicos. Com a adoção de novas tecnologias, fraudes como a identificada no Programa Farmácia Popular serão parte de um passado muito distante, temido e que não se repetirá. Teremos, enfim, todos os instrumentos necessários para direcionar recursos públicos a quem precisa, promovendo a tão desejada justiça social.

 

 

Confira o texto na íntegra no UOL/Tilt.

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