A edição de junho da revista PEGN (Pequenas Empresas & Grandes negócios) publicou a lista das 100 Startups To Watch 2021 e com ela uma matéria especial sobre empresas que estão conseguindo unir lucro e impacto social. Na reportagem, seis startups compartilham suas experiências e objetivos para inspirar outros tantos empreendedores espalhados pelo Brasil. São empresas que estão trabalhando para acabar com a fome, o racismo e a desigualdade social e de gênero no país. O Cofundador e CEO do BrazilLAB, Guilherme Dominguez, é uma das fontes entrevistadas e reforçou a importância do empreendedorismo de impacto social para o crescimento do Brasil.
Na pandemia, essa tendência se consolidou, com o surgimento de dezenas de empresas digitais dedicadas a melhorar as condições de vida dos brasileiros. “Os empreendedores descobriram que a chave para causar mais impacto é usar as mesmas ferramentas adotadas por fintechs, edtechs, foodtechs... Isso faz com que tenham um alcance muito maior”, ressaltou Guilherme Dominguez, CEO do BrazilLAB, hub de inovação que conecta startups de impacto a gestores públicos. “Um negócio tradicional pode fazer a diferença? Claro que sim, mas dificilmente consegue impactar pessoas em larga escala ou atuar em mais de uma região do país.”
Leia abaixo a matéria na íntegra e conheça o trabalho das startups Se Candidate, Mulher, Comida Invisível, 4way, Wolo TV, Fashion Masks e UnicaInstancia.
Existe uma nova geração de empreendedores de tecnologia que não têm como prioridade captar aportes ou exportar para outros mercados. Eles querem, sim, ganhar escala — mas para garantir que suas soluções cheguem ao maior número de pessoas possível. Com esse objetivo, fundam startups de impacto, que usam recursos tecnológicos para atacar algumas das questões sociais mais urgentes do país.
Na pandemia, essa tendência se consolidou, com o surgimento de dezenas de empresas digitais dedicadas a melhorar as condições de vida dos brasileiros. “Os empreendedores descobriram que a chave para causar mais impacto é usar as mesmas ferramentas adotadas por fintechs, edtechs, foodtechs... Isso faz com que tenham um alcance muito maior”, diz Guilherme Dominguez, diretor-executivo do BrazilLAB, hub de inovação que conecta startups de impacto a gestores públicos. “Um negócio tradicional pode fazer a diferença? Claro que sim, mas dificilmente consegue impactar pessoas em larga escala ou atuar em mais de uma região do país.”
Costurar lucro e impacto social não é nada impossível. Do contrário, não haveria tanta gente interessada em investir em companhias comprometidas com o fim de disparidades crônicas. “Durante muito tempo, o propósito social foi visto pelos investidores como um mero diferencial. Hoje virou prioridade”, diz Maure Pessanha, diretora-executiva da Artemisia, que acelera negócios de impacto socioambiental no Brasil. Ela lembra que a pandemia colocou as empresas com causa sob os holofotes. “Além de dinheiro dos fundos de investimento, as startups de impacto estão atraindo grandes talentos da nova geração, que não querem mais trabalhar em companhias indiferentes às dores da sociedade”, afirma Maure. Esses jovens empreendedores também se encantam com as possibilidades da chamada “escala do bem”. “Nesse nicho, quanto mais o negócio fatura, mais consegue beneficiar a sociedade. É um ciclo virtuoso”, diz Dominguez, do BrazilLAB. Conheça a seguir seis startups que estão fazendo a diferença em 2021.
Fazer com que a quebrada fale inglês é o objetivo da 4way, startup criada na periferia de Guarulhos (SP) pelos sócios Diego Ramos, 26 anos, e Diogo Bezerra da Silva, 27. A empresa, que ensina inglês para jovens de baixa renda, nasceu em 2016 a partir de um investimento inicial de R$ 6.125, amealhado por meio de um crowdfunding. “Começamos com zero dinheiro e zero experiência”, diz Ramos. Os dois sócios aprenderam inglês durante os dois anos em que viajaram como voluntários da igreja que frequentam, de origem americana, mais conhecida como Mórmon — o primeiro viajou para a Bahia, e o outro para Portugal. “Como essas excursões envolvem muitos americanos, você fica em contato com o inglês o dia todo”, explica Silva, graduado em marketing. “Aprender a língua dessa forma é bem mais fácil.”
Para que outros jovens como ele dominem o idioma em pouco tempo, sua startup aposta no mesmo modelo. “O ensino tradicional dá ênfase demais à gramática e não às situações do dia a dia”, emenda Ramos, que está cursando Direito. A fim de aumentar o alcance do negócio de impacto, eles praticam preços acessíveis e ainda concedem bolsas de estudos — a cada duas matrículas feitas por estudantes pagantes, uma bolsa vai para quem não pode pagar.
As primeiras aulas eram dadas numa igreja no Jardim Pantanal, conhecido pelos alagamentos, na Zona Leste paulistana, onde Silva cresceu — depois, foram transferidas para três shoppings de fácil acesso. 2019 foi um ano de crescimento e consolidação da empresa. Mas foi só em 2020 que a empresa abraçou o seu lado digital, fazendo uma parceria com a plataforma canadense de ensino Smart English. Ao longo do ano, também participaram de programas de aceleração e conseguiram aprimorar suas estratégias de marketing digital.
Um aporte de R$ 150 mil recebido durante um reality show televisivo, no início de 2021, permitirá que a empresa desenvolva ainda mais seus cursos online. Ministradas por seis professores, as aulas seguirão totalmente virtuais até o ano que vem, quando terá início um modelo híbrido. “Nosso público é da quebrada, então manter o presencial é fundamental”, afirma Silva. “Posso garantir que não vai ser por falta de inglês que os jovens da periferia vão ter menos oportunidades”, avisa.
Em Casa da Vó, a cantora baiana Margareth Menezes interpreta uma impagável senhora pagodeira que divide o teto com quatro netos em São Paulo. A série cômica estreou no dia 25 de dezembro passado, marcando a estreia de uma nova plataforma de streaming, a Wolo TV. O apelido “Netflix da diversidade” é bastante apropriado: a nova empresa tem como meta dar espaço apenas para pessoas negras, tanto diante quanto atrás das câmeras. “Mais da metade da população brasileira é preta, mas 98% das produções audiovisuais do país são comandadas por brancos”, diz Licínio Januário, 29 anos, um dos fundadores da nova plataforma. “Passou da hora de equilibrarmos esses números. O país não se reconhece no que é produzido.”
Angolano radicado há 15 anos no Brasil, Januário montou a Wolo TV em parceria com o gaúcho Leandro Lemos, 43 anos, que mora no Canadá. O sócio responde pela área comercial da companhia — no ambiente das startups, Lemos ficou conhecido por fundar e vender a TechParking, responsável por aquele sistema que indica com lâmpadas as vagas em estacionamentos. Ator, roteirista e produtor, Licínio é responsável pela parte criativa da empreitada. Os dois investiram R$ 1,2 milhão no negócio — no momento, estão em busca de investidores para aprimorar os serviços. O nome escolhido, uma expressão africana que equivale ao nosso “eita”, reflete a ambição da dupla de levar a plataforma para outros países — não à toa, ela está registrada no Brasil e nos Estados Unidos. “É um nome fácil e alegre”, afirma Januário.
O endereço da plataforma, cujo aplicativo ainda está em desenvolvimento, é Wolo.TV. Ela adota o sistema pay-per-view — os valores partem de R$ 4,99, e há conteúdos gratuitos. Além de Casa da Vó, dirigida por Licínio e produzida durante a pandemia, constam hoje no catálogo mais cinco produções desenvolvidas por terceiros. A meta é terminar o ano com mais de 40 atrações, boa parte delas de produção própria.
Na segunda quinzena de março de 2020, período que marcou o início da quarentena no país, 7 milhões de mulheres brasileiras deixaram o mercado de trabalho, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Foram 2 milhões a mais do que os homens na mesma situação. Mineira de Viçosa, Jhenyffer Coutinho ficou a par da notícia nos Estados Unidos, para onde havia viajado para aprimorar o inglês. De imediato, a administradora de empresas lembrou de uma antiga pesquisa da HP. O estudo dizia que as mulheres, em geral, só se candidatam a uma vaga de emprego quando cumprem 100% dos pré-requisitos exigidos. Já os homens tentam a sorte mesmo atendendo a 60% das exigências. “Elas sofrem com a chamada Síndrome do Impostor, que as impede de arriscar”, afirma Jhenyffer, 28 anos, com a experiência de quem foi gerente de gestão da Associação Brasileira de Startups por dois anos.
Decidida a ajudar essas profissionais, a empreendedora criou em maio do ano passado a Se Candidate, Mulher!. No início, o projeto se resumia a uma newsletter. Três meses depois, já era um negócio digital. Exclusiva para mulheres, a plataforma da startup oferece três tipos de cursos preparatórios para processos seletivos. Todos somam 12 horas de aulas gravadas, que podem ser assistidas em até um ano, e incluem mentorias virtuais, em grupo, a cada 15 dias. Quem opta pelo pacote mais caro ganha uma consultoria para melhorar o currículo e o perfil no LinkedIn. O foco são as profissionais em início de carreira e as que querem reingressar no mercado de trabalho. Total de alunas até aqui: mais de 3 mil, 247 das quais já contratadas. A startup também atende o mercado corporativo — entre seus clientes estão companhias como Movile e PicPay. Até agora, foi bancada com recursos próprios, sem nenhum investidor. Para o segundo semestre, planeja um passo decisivo: o lançamento de um banco de talentos que funcionará como uma espécie de LinkedIn feminino.
Democratizar o acesso a serviços de mediação é a proposta da UnicaInstancia, empresa fundada pelos cariocas Gilmar Bueno, 28 anos, e Sara Raimundo, 30, em maio do ano passado. A startup se propõe a ajudar públicos das classes C e D, mais vulneráveis, a resolver problemas relacionados a contas indevidas e cobranças equivocadas nas faturas de celular, internet, luz, água e TV a cabo. “Para famílias com renda até R$ 2 mil, R$ 20 a menos por mês, cobrados de forma indevida, têm um impacto considerável”, diz Bueno. O serviço, que usa IA para prever possíveis ganhos com ações judiciais, é gratuito e aberto a todos: basta cadastrar no site da UnicaInstancia a conta na qual enxerga um erro e resumir o problema. A empresa promete uma resposta em até 24 horas.
Se aceitar o caso, deposita até R$ 600 na conta do cliente, dependendo do tamanho do prejuízo envolvido. E vai bater na porta da empresa responsável. Se voltar de mãos abanando, amarga o prejuízo sozinha. Todo o dinheiro arrecadado, no entanto, fica integralmente com a startup, que já repassou a seus clientes mais de R$ 300 mil — o faturamento é mantido em sigilo. “Quando você identifica uma cobrança indevida, ela provavelmente começou seis meses antes”, observa Sara. “Se é fruto de má-fé da companhia ou um simples erro, não dá para dizer.”
Das 500 pendengas resolvidas até aqui, apenas uma terminou na Justiça. “A mediação é bem mais vantajosa para todas as partes”, explica Bueno, que exerce o cargo de CEO e comanda uma equipe com 12 funcionários. Mais de 2 mil pessoas já recorreram à startup, e 200 novos casos são avaliados a cada mês. “Muita gente abre mão de seus direitos por não ter ideia de onde procurá-los”, diz Sara. “Queremos dar voz a essas pessoas.” Desde dezembro do ano passado, a startup é acelerada pela BlackRocks. O primeiro investimento externo, feito em abril deste ano, veio do Google — o valor não é revelado pelos sócios.
Hoje, pelo menos 19 milhões de pessoas vivem com fome no Brasil, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan). Ainda de acordo com o estudo, 55% dos lares dos brasileiros, ou o equivalente a 116,8 milhões de pessoas, conviviam com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020. Os números mostram que combater a fome talvez seja hoje a questão mais urgente do país. E é aí que entra a advogada Daniela Leite, fundadora da Comida Invisível. A startup fundada em 2018 faz a ponte entre quem tem alimentos para doar e quem precisa deles, com a ajuda da geolocalização. No site da empresa estão cadastradas 101 empresas — entre supermercados, cadeias de restaurantes e hotéis — e 1,7 mil pessoas físicas, que podem doar para 210 ONGs. Quem quer colaborar só precisa informar do que dispõe, aguardar a resposta de alguma entidade interessada, o que leva em média 8 minutos, e combinar a retirada.
“Decidi criar a empresa depois de descobrir que, a cada ano, 1,6 bilhão de toneladas de comida, ou um terço do que é produzido no mundo, termina no lixo”, diz Daniela. A cifra foi apresentada em 2018 pelo Boston Consulting Group, que estimou o prejuízo anual em US$ 1,2 trilhão. De acordo com a mesma entidade, em 2030 o volume desperdiçado somará 2,1 bilhões de toneladas, avaliados em US$ 1,5 trilhão. “Calculei o número de Boeings 747 que seriam necessários para transportar aquela comida toda. São mais de 11 milhões de aeronaves! Eu precisava fazer algo para mudar isso.”
Daniela, única sócia da empresa, não revela quanto fatura nem quanto investiu no projeto. Também não diz quanto amealhou com a linha de crédito concedida pelo BNDES. Mas revela que a empresa tem como parceira estratégica a Microsoft, que apoia a plataforma desde abril deste ano. Tudo somado, a startup já intermediou a doação de 60 toneladas de alimentos. A cifra exclui a campanha que beneficiou com cestas básicas 10 mil pessoas em situação de risco durante a pandemia. “Com a pandemia, a fome se tornou um problema ainda mais grave, e o desperdício de comida ficou ainda mais inaceitável”, afirma.
Em março do ano passado, quando o Brasil já estava em quarentena, Brenno Faro, 28 anos, fundador da desenvolvedora Nas11, concluiu o que demorou a ficar óbvio para todo mundo: para frear a disseminação do novo coronavírus, o país precisaria produzir muitas e muitas máscaras. As descartáveis, defendiam as autoridades de saúde na época, deviam ser reservadas para médicos e enfermeiros. O restante da população deveria procurar artigos de pano, naquele momento ainda escassos no mercado. A oportunidade de negócio estava ali, mas Faro queria também gerar impacto social. Foi então que decidiu criar uma plataforma para conectar costureiras de baixa renda a clientes que precisassem de máscaras. Nascia a Fashion Masks, responsável pela produção de 8 milhões de máscaras até o momento. Em 2020, a empresa faturou R$ 16 milhões, gerando R$ 1,5 milhão para as costureiras.
Para fazer o negócio funcionar, Faro engajou empresários que conheceu por meio da Nas11, que desenvolve sistemas de CRM. Da Malwee, passou a comprar tecidos a preços camaradas. A VTEX abrigou o e-commerce da marca com condições especiais. Já a PayU, que intermedeia pagamentos, zerou suas taxas por três meses. A maioria das máscaras produzidas pela Fashion Masks foi para clientes corporativos, como Nike, Starbucks e 99. Só a Petrobras adquiriu mais de 1 milhão.
“Adoraria que as máscaras deixassem de ser necessárias, mas há quem diga que elas continuam por mais dois anos”, diz Faro, que tem como sócio Marcos Rechtman, 69 anos. Na plataforma da marca estão cadastradas hoje mais de 5 mil costureiras, que produzem por conta própria e trabalham conforme a demanda em suas regiões. Hoje, as profissionais também confeccionam camisetas, vestidos e shorts. Para 2021, espera-se uma receita de R$ 12 milhões, a metade da prevista para o ano seguinte. “A Fashion Masks será lembrada pelo impacto social. O faturamento vem em segundo lugar”, diz Faro.